O papel evolutivo dos Tribunais de Contas e a necessidade de um choque de transparência
O auditor de contas Amauri Perusso, do TCE-RS, é Presidente da FENASTC – Federação Nacional dos Servidores dos Tribunais de Contas, e Diretor da CONACATE – Confederação Nacional das Carreiras Típicas de atividades de Estado. Nesta qualidade, vem acompanhando e participando ativamente da mudança de interesse da imprensa e da sociedade sobre estes órgãos de fiscalização de contas.
De instâncias esquecidas da atenção pública e de atuação muitas vezes politizada, os tribunais de contas ganharam relevância nos últimos anos, especialmente após a implantação da Lei da Responsabilidade Fiscal, Lei da Ficha Limpa e da Lei de Acesso à Informação.
Amauri Perusso foi uma das lideranças da Campanha “Conselheiro Cidadão”, que incentivava a redução de indicados por parte de Governadores e Prefeitos para o cargo de conselheiros, responsáveis pelo julgamento de contas. A idéia era abrir espaço para que servidores / auditores experientes dos quadros de carreira pudessem também transformar-se em conselheiros e assim dar caráter mais técnico nestes julgamentos. A campanha encontrou apoio e permitiu realmente que em algumas destas casas de contas servidores especializados assumissem até a Presidência, como foi o caso da Bahia.
Do passado recente para hoje, muita coisa mudou e de maneira rápida. Sessões de julgamento são gravadas ou transmitidas ao vivo, sessões são abertas ocasionalmente ao público, TCEs mais ativos lançam sistemas de apoio à denúncias por parte do cidadão, fazem acompanhamento prévio da ordenação de despesas, porém a situação ainda está longe do ideal, e uma das demandas é de maior transparência e autonomia nas auditorias em curso.
Segue entrevista realizada sobre o tema, pela redação do site da CONACATE (www.conacate.org.br)
Redação: Amauri, hoje a condição de fiscalização do trabalho de auditoria de contas, dos tribunais de contas, é melhor do que já foi no passado?
Amauri Perusso: Certamente. A grande diferença que produzirá resultados relevantes para a sociedade é a presença do controle social sobre o Estado. Controle social não é uma palavra qualquer. Ele expressa um levante da cidadania. Uma afirmação do indivíduo e do interesse social e público mesmo contra o Estado, que deveria ser a representação do conjunto da sociedade, que por vezes não é. E um estado frágil dá vazão a uma série de interesses. Ele pode ser apropriado, sequestrado por interesses privados que dirigem ele para questões que não atendem a maioria da população e muitas vezes atendem a pequenos grupos econômicos, que se valem da sua pressão e do seu poder, para subtrair vantagens ou lucros adicionais em relação a sua atividade.
É curioso perceber que o controle social de que estamos falando, e para onde caminham os tribunais de contas - que não caminham só porque desejam, caminham porque há uma exigência, uma pressão da população - esse controle social vem acompanhado da visão de transparência - apresentar em público, tudo aquilo que é público. Isso produz um sentido de melhora dos serviços públicos, maior controle sobre a realização de despesas públicas e, portanto, um juízo de valor inclusive sobre as opções que o gestor público está dando encaminhamento às próprias escolhas: "vou alocar recursos em uma atividade A ou atividade B" podem ser discutidas e examinadas pela sociedade antes da deliberação da alocação desses recursos.
A qualidade da despesa melhora substantivamente nessa visão de transparência e publicidade real. Não a publicidade do edital, mas a publicidade da informação clara e precisa de modo que a sociedade dela possa participar das decisões de interesse público.
Redação: Esse antagonismo político que tem hoje no Brasil, onde se produzem versões, e lideranças e analistas se apropriam dos fatos como acham melhor, a população e a imprensa aparentemente tem dado uma atenção maior aos órgãos de contas. Eles, de alguma maneira, oferecem uma fonte mais neutra e isenta de dados para reduzir a politização partidária destas versões ? E o Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul, por exemplo, fez auditoria antecipada dos custos da tarifa dos transportes públicos.. é um outro enfoque colaborativo?
Amauri Perusso: Certamente. Estamos falando de que precisamos fazer mais auditorias concomitantes, ou seja, acompanhando a realização da despesa, da compra, do serviço e da realização da obra, e intervindo previamente para evitar danos. Estamos falando de estudos técnicos que autorizem o tribunal a fazer orientações ao gestor público no sentido daquilo que é mais econômico e mais produtivo para a sociedade, e também estamos falando de conferir publicidade daquilo que nós encontramos. O exemplo que você trouxe de Porto Alegre evidencia que uma auditoria que estava fazendo um estudo sobre o sistema de transporte da capital, produziu informações que publicizadas - entregues à população - virou o elemento central do debate público. Ou seja, a população recebendo informações de qualidade, consegue fazer uma discussão política qualificada. Ela abandona dados que não são reais ou que por vezes não tem nenhuma consistência, e passa utilizar informações mais precisas.
Redação: Nós temos também um outro exemplo atual que é o da solicitação de entidades representativas, e até de forma voluntária, do TCU analisar as contas
da previdência.
Amauri Perusso: Esse é um bom exemplo. O país está em um debate mediante a apresentação de uma proposta de emenda constitucional, a 287 de 2016, e técnicos, assim como eu, do tribunal de contas e outros, estão apresentando contradições em relação aos números que o governo publiciza. E isso nos leva ao seguinte: quais são os números reais? Em cima do que estamos discutindo? As medidas que estão sendo sugeridas, elas são adequadas e suficientes para enfrentar o problema? Elas estão respondendo a contradição existente? Então é indispensável que esses instrumentos e instituições possam interferir formalmente nessas discussões. Fazendo com que tenhamos os números precisos, um histórico confiável e, a partir daí fazermos projeções e um debate qualificado, racional, equilibrado e que produza uma solução que seja suficiente para dar segurança para a sociedade e seu futuro.
Quero registrar aqui, na nossa entrevista, que nós auditores dos tribunais de contas do Brasil, e a FENASTC, estamos defendendo a idéia de que todos os relatórios de auditorias que são produzidos devem receber publicidade, ou seja, colocar na internet para que qualquer cidadão do povo possa utilizar as informações.
Redação: Hoje, qual o contexto da publicização das auditorias? Em que estágio elas são realmente divulgadas?
Amauri Perusso: É inexorável que os tribunais de contas e todos os órgãos públicos dêem publicidade as informações que dispõem. A reserva, o sigilo, é exceção. A publicidade deve ser a regra. Nos tribunais de contas, dois tribunais brasileiros já estão fazendo a publicação. Tão logo o relatório esteja pronto, lança-se na rede internacional de computadores. O nosso objetivo é que os 34 tribunais realizem esse procedimento. O outro objetivo, que é grandemente emancipatório, é a independência da função de auditoria. Ou seja, o auditor vai fazer todo o seu trabalho técnico e esse trabalho uma vez será publicizado e só então entrará o agente político - o conselheiro, ministro - para formular decisões de tal sorte que haja uma separação objetiva das funções. Quem audita, não dá sentença. Quem dá a decisão, não interfere no ato de auditoria. Com isso você protege a sociedade ao produzir um trabalho técnico. As carreiras típicas de estado têm que ganhar esse processo emancipatório. Elas têm o dever de responder a sociedade pela qualidade que tem, apresentando informações a sociedade, ou gestando políticas públicas
para a sociedade, de modo que a decisão final que tem um caráter político, esteja subsidiada por informações precisas e seguras para que sejam tomadas
deliberações a favor da população.
Redação: Nesse contexto, existe algum estudo sobre como avançar na questão de melhorar a neutralidade dos julgamentos dentro dos tribunais de contas?
Amauri Perusso: Certamente. Preciso esclarecer que o modelo de escolha dos ministros e conselheiros previsto na constituição não tem sido observado. Porque a escolha deveria ser feita dentre brasileiros, portanto ela tem uma característica republicana. A FENASTC tem defendido por todo o Brasil que, aberta uma vaga de ministro ou conselheiro em tribunais de contas, deve ser publicado um edital para que qualquer cidadão do povo que se credite com os requisitos necessários, possa apresentar-se para a disputa. Feita a disputa, que o parlamento escolha o mais capacitado, o mais preparado. E, portanto, essa é uma escolha democrática e republicana. O que temos assistido é um rateio das vagas entre maiorias ocasionais dentro dos parlamentos, opressão de governadores, presidentes e até prefeitos e que, portanto, acabam fazendo escolhas de compadrio, e não de qualidade. Não são escohas republicanas.
Estamos trabalhando com isso. Temos uma campanha nacional do ministro, conselheiro e cidadão para enaltecer exatamente isso. Além disso, estamos defendendo que os tribunais ganhem um equilíbrio entre aqueles que vem da experiência técnica, como é o caso dos auditores como eu, que andam pelo campo com 30 anos de experiência de auditoria, que seja reservado a eles uma vaga ou mais de uma vaga de ministro e conselheiro, de sorte que a gente possa carregar conosco a experiência do trabalho do conhecimento da realidade objetivo dos municípios, das finanças do estado e da união.
Mas o essencial nesse momento é a participação da sociedade. É ter o processo transparente, democrático e republicano na escolha. E nós entendemos que será muito relevante se nós tivermos a publicidade dos relatórios de auditoria, porque os graus de liberdade dos julgadores, ficará substantivamente reduzido. A população vai observar e vai pressionar democraticamente como se faz em todos os outros lugares. Isso vale para os tribunais de contas, e isso vale para o judiciário. É preciso retirar a reserva que existe sob inúmeros processos judiciais onde se trata de interesse público. Tem reservas determinadas quando tem menores envolvidos, ou assuntos relevantes. Quando se está investigando matéria de interesse público, como é o caso agora da Lava Jato, todas as informações devem ser apresentadas para a sociedade, sem pré-julgamento. Mas, que ela domine, tenha conhecimento, possa participar desse processo. Isso vale para os acordos de leniência das
empresas. Isso vale para outras situações onde o estado possa transacionar com uma empresa ou com um indivíduo a correção de uma determinada conduta. É matéria legal, mas ela precisa ganhar um espaço público porque dessa maneira a sociedade vai ter uma participação e um controle. Eu costumo dizer que o combate a corrupção se dá antes que ela aconteça. Por isso temos que ter instrumentos adequados, controle interno dentro das empresas, sejam públicas ou privadas, controle externo eficiente, portanto independente, mas nada disso será suficiente sem o controle social, e ele só é possível com um enorme grau de transparência. Ou seja, nós precisamos, no Brasil, um choque de transparência. Precisamos colocar em público tudo aquilo que é público. E sorte que o cidadão conhecendo, pode participar. Isso inclui o jornalista, o médico, o agricultor da ponta, o estudante na universidade, a associação de bairro, o conjunto de organizações não-governamentais que atuam nessas questões. Ou seja, o Brasil necessita de uma grande política de transparência para que o controle social se estabeleça, e isso é um grande ganho da
cidadania para garantir que as decisões, especialmente as públicas, tenham caráter de interesse público relevante.
Por exemplo, você já se perguntou qual é o grau de transparência que existem nas decisões do Banco Central do Brasil e o quanto isso afeta nas nossas vidas? Seja numa simples decisão de quanto de dinheiro eles irão colocar no mercado, ou a taxa de juros que será praticada, ele afeta a vida de todos os brasileiros e, no entanto, não há nenhuma compreensão da população de como essa intervenção pública se organiza e se define numa direção ou em outra.
Redação: Creio que as chamadas atas sonoras destas reuniões tem uma reserva de x anos na manutenção de sigilo....
Amauri Perusso: Mas o que tem de secreto lá? A decisão já está tomada e o impacto na economia já foi feito. O importante para sabermos é o seguinte: quem influenciou na decisão para que ela fosse nessa decisão?
Quem ganhou e quem perdeu com essa decisão? Decisões sempre produzem escolhas, e escolhas podem produzir ganhos e/ou perdas, e geralmente alguém perde em favor de outro alguém. Então nós precisamos dar e ter a publicidade disso de forma que a população possa conhecer.
Eu diria o seguinte, o clima que estamos vivendo no Brasil - de discussão das questões nacionais - embora nos deixe ansiosos e confusos, pois é um conjunto de matérias sendo tratadas, estes temas todos estão produzindo um processo de ganho de consciência. Você pode até dizer que em um primeiro momento é uma consciência ingênua, que nos leva a ter opiniões superficiais sobre um tema ou outro, sem compreensão mais profunda. Pois é, se nós dermos informações para que a população possa ter domínio pleno delas num curso breve de tempo, nós passaremos a ter uma cidadania atuante, com participação ativa, e isso muda a lógica da organização social e muda a lógica da atuação do Estado brasileiro.